2044 - Memórias de uma enchente que mudou o estado
"Nossos olhos, já cansados de presenciar tantos projetos e paisagens, nunca esquecerão a cena que se descortinou diante de nós naquele fatídico mês de maio de 2024. As água vindas dos esgotos e bueiros, como uma fúria incontrolável, varreram Porto Alegre, deixando um rastro de destruição e desespero. Casas que antes transbordavam vida agora jaziam em ruínas, famílias desamparadas corriam para fora de suas residências em busca de abrigo, e um silêncio sepulcral pairava no ar. Não havia luz elétrica, não havia sinal de internet e nem água chegava às casas de quem não havia sido atingido pelos alagamentos.
Em meio ao caos, nosso coração se apertava por aqueles que mais sofreriam: os mais velhos, guardiões de memórias e sabedoria ancestral. Ver seus lares, construídos com suor e dedicação ao longo de uma vida, serem tragados pela força da natureza era como presenciar a própria história sendo apagada.
Mas, em meio à dor, uma fagulha de esperança teimava em persistir. A comunidade, unida pela adversidade, se ergueu como um só ser, movida por um sentimento de compaixão e solidariedade sem precedentes. Vizinhos ajudavam vizinhos, mãos se uniam para reconstruir o que a enchente havia levado, e corações se abriam para oferecer conforto e abrigo aos necessitados.
Como arquitetos, nosso papel nesse cenário era duplo: auxiliar na reconstrução física e na reconstrução emocional. Era preciso erguer novas casas, sim, mas também era preciso reconstruir os laços afetivos, resgatar as memórias e ressignificar o espaço.
Para isso, nos guiamos por um profundo senso de empatia e respeito pela história de cada um. Conversamos longamente com os moradores, especialmente os mais velhos, buscando entender suas necessidades, seus sonhos e seus medos. Cada casa seria única, um reflexo da alma de seus habitantes, um refúgio seguro onde memórias pudessem ser preservadas e novas histórias escritas.
Nas casas dos mais experientes, a atenção se voltava para a valorização da sabedoria e da experiência. Espaços antes dedicados à solidão agora se transformariam em áreas de convívio intergeracional, onde jovens e velhos se reuniriam para compartilhar histórias, ensinamentos e valores. Jardins floridos brotariam nos quintais, simbolizando a vida que renasce após a tempestade e a esperança que brota da união e da colaboração.
O processo de reconstrução não foi fácil. Houve dias de cansaço, frustração e dúvidas. Mas a cada passo, a força da comunidade e a perseverança das pessoas nos inspiravam a seguir em frente. Ao final, quando as novas casas finalmente estavam prontas, presenciamos um sentimento de união, gratidão e recomeço como nunca antes havíamos visto.
A enchente de 2024 deixou marcas profundas em todos nós, mas também ensinou valiosas lições sobre a força da natureza, a fragilidade da vida material e, acima de tudo, a importância da empatia, da solidariedade e da valorização da sabedoria ancestral. As casas podem ser reconstruídas, mas as memórias, os afetos e os ensinamentos dos mais velhos são eternos. E é neles que reside a verdadeira força para recomeçar e construir um futuro mais humano, sustentável e próspero.
Hoje, vinte anos após a tragédia, olhamos para a cidade e vemos uma comunidade transformada. As cicatrizes da enchente ainda estão presentes, mas servem como um lembrete constante da nossa capacidade de superação e da importância de vivermos em harmonia com o meio ambiente e com os mais velhos, verdadeiros guardiões da nossa história e da nossa sabedoria."
Uma linda fábula que poderá (ou não) ser contada daqui a 20 anos. Mas quais seriam as principais lições a aprender com as enchentes de 2024 no RS? Quais os passos nas leis ambientais, preservação da natureza e respeito às pessoas a seguir para que o conto acima possa ser transformada em realidade?
As principais lições a serem aprendidas com a tragédia são:
A urgência de ações contra as mudanças climáticas: A intensidade e a frequência de eventos climáticos extremos como a enchente de 2024 são consequências diretas do aquecimento global. Reduzir as emissões de gases do efeito estufa e investir em fontes de energia renováveis é crucial para mitigar os impactos das mudanças climáticas e evitar desastres futuros.
A importância do planejamento urbano sustentável: Cidades precisam ser repensadas para se tornarem mais resilientes à água, com infraestrutura adequada para escoamento da água, áreas verdes como amortecedores naturais e ocupação consciente de áreas de risco.
A necessidade de proteger os recursos hídricos: A preservação de nascentes, matas ciliares e áreas de recarga de aquíferos é fundamental para garantir a qualidade e a disponibilidade da água, um recurso vital para a vida e o desenvolvimento sustentável.
A valorização da educação ambiental: Conscientizar a população sobre os desafios ambientais e promover a mudança de hábitos são medidas essenciais para construir uma sociedade mais engajada na proteção do meio ambiente.
A importância da solidariedade e da empatia: A enchente de 2024 demonstrou o poder da união e da colaboração em momentos de crise. Fortalecer os laços comunitários e promover a cultura da solidariedade são pilares para construir uma sociedade mais justa e resiliente.
Para transformar a fábula da reconstrução em realidade, é necessário um conjunto de ações que combinem mudanças nas leis ambientais, preservação da natureza e respeito às pessoas:
No âmbito legal:
Aprimorar a legislação ambiental: Leis mais rígidas e eficazes para o controle da poluição, proteção de áreas naturais e uso sustentável dos recursos naturais são essenciais para garantir a proteção ambiental.
Implementar mecanismos de fiscalização e cobrança: A fiscalização rigorosa das leis ambientais e a aplicação de sanções adequadas aos infratores são fundamentais para deter o desmatamento ilegal, a poluição e outras práticas nocivas ao meio ambiente.
Promover a participação social: A sociedade civil deve ter voz ativa na elaboração e implementação de políticas públicas ambientais, garantindo que as necessidades e anseios da população sejam considerados.
Na preservação da natureza:
Ampliar as áreas protegidas: Criar e proteger áreas de conservação ambiental é fundamental para preservar a biodiversidade, garantir a qualidade da água e do ar e combater o desmatamento.
Incentivar o reflorestamento: Reflorestar áreas degradadas e promover a agricultura sustentável são medidas importantes para recuperar os ecossistemas e mitigar os efeitos das mudanças climáticas.
Adotar práticas agrícolas e industriais sustentáveis: Reduzir o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, investir em energias renováveis e promover a gestão eficiente dos recursos são essenciais para minimizar o impacto das atividades humanas no meio ambiente.
No respeito às pessoas:
Garantir o acesso à moradia digna: Políticas públicas que facilitem o acesso à moradia segura e adequada, especialmente para populações em situação de vulnerabilidade, são fundamentais para garantir a qualidade de vida e a dignidade das pessoas.
Promover a inclusão social: Combater a desigualdade social e garantir o acesso a serviços básicos como educação, saúde e saneamento são medidas essenciais para construir uma sociedade mais justa e inclusiva.
Valorizar o conhecimento tradicional e a sabedoria dos mais velhos: O diálogo intercultural e o respeito às diferentes formas de conhecimento são essenciais para construir um futuro mais sustentável e humano.
As enchentes de 2024 no Rio Grande do Sul foram um marco trágico, mas também uma oportunidade para repensarmos nossa relação com o meio ambiente e com as pessoas. Ao aprendermos as lições dessa tragédia e tomarmos medidas concretas para proteger o planeta e promover o bem-estar das pessoas, podemos construir um futuro mais resiliente, sustentável e humano para todos.
Texto cirúrgico, completo e absolutamente necessário neste momento. O desafio é que não vemos essas diretrizes serem seguidas e as ações sendo implantadas. Poucas semanas se passaram e parece que nem aconteceu a catástrofe da enchente. E o pouco que foi feito até agora é um grão de areia comparado ao que ainda falta. Andar por Porto Alegre é enxergar as marcas horizontais da água ainda marcadas nas infinitas fachadas que ela atingiu é como olhar para uma gigantesca fratura exposta ainda longe de cicatrizar.
ResponderExcluirIsso me apavora, Eliza, pensar que faz tão pouco tempo e que a memória vai se esvaindo. Por isso escrever e escrever é minha forma de reação sobre. Para que não se esqueça, para que se reflita e que haja ações efetivas. Quem sabe...Obrigada pelo comentário
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