Memórias da casa da infância são marcas que nunca saem
Das casas onde vivi, umas onze pelo que lembro, guardo algumas na memória de maneira mais vívida. A primeira que me lembro é a única que não existe mais. Não tenho recordações em fotos, apenas algumas com nesgas de imagens. Ela mora mesmo é dentro de mim. Anos atrás fiz uma planta rascunhada de memória. Não tem escala, vejam bem, eu tinha dois anos quando fui morar ali. Saí com seis. Mas os espaços são claros em minha lembrança.
Era uma casa grande. O dono, pois era alugada, era um médico alemão, o projeto era limpo e devia seguir os padrões da época. Ficava no cimo de um morro. Isso, por si só, já lhe conferia uma certa majestade. Seu muro alto, mas que não a escondia, era cheio de uma força vigorosa, mas transparente. Para entrar, se subia por uma escada curva. Não existia acessibilidade naquela época. Eram os anos 60. A vida vibrava em ousadias em algum lugar do planeta. Não ainda na pequena cidade onde eu morava. Ali tudo ainda era vivido com magia e encantamento.
Na entrada, um imenso vestíbulo, que a gente chamava de hall, dividia a ala íntima da funcional. E ligava a entrada ao jardim. Era um espaço inútil, mas era tão lindo! Minha mãe colocou um imenso vaso com plantas em um canto e um móvel de livros, que nos acompanhava desde a cidade do meu nascimento.
Os quartos, pelo menos os da frente, tinham uma peculiaridade: as janelas eram muito altas. Minha mãe sempre dizia que era a mania alemã de privacidade. Talvez fosse. Acho que eram basculantes e deviam ter um mecanismo para serem manejadas. Não tinham persianas nem cortinas. Não na minha memória. Mas o pé direito era altíssimo! E os ambientes, muito cheios de luminosidade. Os quartos do fundo, não recordo, mas acho que sim, tinham janelas de altura mais normal. Naquela época não existiam ainda vários banheiros, todos usavam o mesmo. Talvez a gente daquele tempo fosse mais acostumada a dividir, não lembro de brigas nos horários de pico. Era todo preto com louças cor de rosa. No boxe, minha mãe me dava banho, cantando e fazendo bolinhas de sabão. Devia ter banheira porque uma remota lembrança de uma gravação da turma da minha irmã aconteceu ali. Meu pai sempre foi muito inovador, tínhamos todas as novidades tecnológicas que estivessem ao alcance de seu bolso. Fomos a primeira família com televisão. E ele tinha um gravador de fita. Era alemão, acho. Os rapazes e moças da turma da minha irmã adolescente fizeram um roteiro e gravaram um audio com Lampião guerreando contra tiranos. Com toda espécie de barulhos. A fita se perdeu com o tempo. Uma pena, era uma preciosidade.
"A memória: guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo."
Eduardo Galeano
Eu não tinha quarto. No espaço entre eles, sobrou um cantinho, tinha uma janela basculante, e aí colocaram meu berço. Achavam lindo! Eu detestava. Não tinha privacidade. Talvez tenha vindo dali a minha necessidade de quartos com chaves, onde pudesse me refugiar quando necessário. E sempre era. Até hoje.
A sala tinha cortinas cor de vinho. Na minha memória eram de veludo na frente de janelas amplas de onde se olhava o mundo lá fora. Interessante, não lembro da lareira que já me disseram que tinha. Na minha memória, meu pai trabalhava ali, na sua escrivaninha sólida que era chamada pomposamente de birô (bureau acho que é a origem). O barulho de sua máquina de escrever, o globo terrestre e o barco de madeira eram marcantes, assim como os livros naquelas estantes baixas, todas ao alcance de nossas mãos. Ele trabalhava enquanto eu passava por baixo da mesa. Tenho essa lembrança do meu tamanho ser tal que podia brincar de andar ereta por ali. Em algum lugar, meu pai deve ter anotado a minha altura, todos os meses. Ele tinha cadernetas especiais para isso. Depois que morreu, encontrei várias, com anotações de preços, de pesos de filhos, de todas as coisas necessárias para guardar. Ali naquela sala também ficava aquela maravilha dos tempos modernos: a TV. Lembro a fila de gente miúda, sentada no chão, esperando começar os programas que eram em horários especiais. Vinham todos os vizinhos para ver! Enquanto não aparecesse o indiozinho da imagem, a gente ficava vendo o chuvisco que, por si só, já era formidável.
Da sala de jantar não lembro muito. Tinha uma mesa grande, tinha comida gostosa. Mas o lugar mais fascinante era a cozinha. Perto da janela, as pias. Ao lado da porta, a geladeira. Entre eles, o fogão. Azulejos até meia parede, depois pintura até o teto muito alto. Guardadas as devidas escalas infantis, creio que chegava perto dos três metros. Tá bom, talvez 2,80. Mas era imponente. Lembro particularmente do dia em que minha mãe cozinhava feijão e se afastou por instantes da frente do fogão. O suficiente para que a panela de pressão explodisse e cobrisse o teto em rojões de líquido marrom. Não cozinho em panelas de pressão até hoje. Me julguem, mas os medos infantis viram cicatrizes difíceis de sarar.
Lembro tanta coisa dessa casa que já não existe mais! Tinha bananeiras no jardim, uma casa de bonecas vermelha que servia de forte para as brincadeiras de meu irmão. Tinha gatos e vizinhos que mantinham os portões abertos e suas casas eram uma extensão das nossas. Tinha pai e mãe tão jovens! Eram espaços de sonhos e realizações.
Um dia essa casa foi demolida. Antes disso, outras pessoas devem ter morado ali. Talvez outra criança tenha sido abrigada no meu cantinho sem portas. Talvez as manchas do feijão no teto nunca tenham sido tiradas. Talvez outras árvores de Natal tenham enfeitado a sala. Talvez outra banda tenha entrado, com todos os seus instrumentos, para uma nova serenata. Hoje o terreno abriga um prédio. Outros sonhos, outros espaços. Outras memórias.
As minha carrego comigo e, de certa forma, me conformam.
“A verdadeira viagem se faz na memória.”
MARCEL PROUST
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