Arquiteta sugere um memorial para o Bom Fim - entrevista para o Jornal Já
Entrevista publicada no Jornal Já em 22/06/2012 e que estou resgatando aqui porque o link saiu do ar.
Arquiteta sugere um memorial para o Bom Fim
22/06/2012 Publicado na(s) categoria(s): Cultura Geral
Há 20 anos com um escritório no Bom Fim, Elenara Stein Leitão, arquiteta formada pela UFRGS, faz um alerta: se a especulação imobiliária, e o subsequente adensamento, continuarem no ritmo atual, daqui a 20 anos restará muito pouco daquilo que para muitas gerações fez o charme do bairro, como as ruas de calçadas largas e tranquilas, seus prédios baixos, e uma certa boemia e gastronomia muito particular. Nesta entrevista ao JÁ, Elenara fala do seu amor ao Bom Fim e da necessidade de evitar a sua descaracterização.
JÁ: A senhora nasceu em Lajeado, morou em Novo Hamburgo e Brasília, e, atualmente, seu endereço residencial é no bairro Independência. O que o Bom Fim representa?
Elenara: Se tivesse que escolher um bairro de Porto Alegre, seria o Bom Fim, por tudo que ele representa na minha vida, desde que era estudante da Federal, das lembranças de uma certa boemia que existia ao longo da avenida Osvaldo Aranha e que ia até a rua Sarmento Leite, formando a histórica Esquina Maldita. Enfim, faz 35 anos que transito por aqui.
JÁ: o bairro mudou muito?
Elenara: O Bom Fim, como o resto da cidade, está se adensando. Assim, as perdas, em termos de arquitetura, são enormes. Ainda restam alguns conjuntos de casas, mas não se sabe até quando resistirão. A tendência é que estas antigas habitações sejam demolidas, que desapareçam para dar lugar a prédios residenciais ou conjuntos comerciais, o que é uma pena. Perde-se a memória como, caso mais recente, a derrubada do imóvel onde se localizava o cinema Baltimore para dar lugar a um mega empreendimento. O prédio poderia ter sido transformado num centro cultural, mantendo, inclusive, uma sala de cinema.
JÁ: O que poderia ser feito para a preservação do bairro?
Elenara: É uma coisa que tem de ser feita via associações de moradores, de amigos do bairro, e redes sociais na internet. Um dos paliativos, e que já ocorre há algum tempo, é a transformação das antigas casas em espaços comerciais e culturais, como livrarias, bares e restaurantes. Trata-se, assim, de estabelecer laços com a contemporaneidade, com a experimentação, preservando, criativamente, o velho através do novo, interagindo com as novas gerações, pois a vida moderna exige intervenções, adequações e reinvenções de antigos espaços.
JÁ: Existe alguma prioridade?
Elenara: O Bom Fim nunca foi um espaço rico em arquitetura, sua riqueza é, fundamentalmente, cultural, das pessoas, como os judeus, que se estabeleceram aqui, principalmente, a partir dos anos 1920. Não há praças e, por outro lado, fora a Capela da Osvaldo Aranha, não se pode destacar prédios isolados. Ou seja, ao contrário de outros locais da cidade, como o Centro ou a Cidade Baixa, não é uma área que chame a atenção, em termos de edificações, do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mas acho que o que resta, como o conjunto de casas que mencionei, devem receber incentivos por parte do município para que os proprietários façam a sua manutenção. Também acho importante preservar o traçado das ruas, as calçadas largas, as árvores, cuidados com os dejetos de animais, equipamentos que facilitem a acessibilidade para deficientes, deixando o lugar aprazível para os moradores, os trabalhadores e demais transeuntes.
JÁ: Uma das características do bairro são os edifícios pequenos, de até três andares.
Elenara: Sim, que foram construídos nas décadas de 1950 e 1960, e caracterizam o segundo processo de ocupação do bairro. Eram, geralmente, construídos pelas famílias judias e que depois vendiam os apartamentos. Esses prédios, alguns já foram demolidos, podem passar por um processo de modernização, transformando-se em imóveis comerciais. Também é uma maneira de preservação, evitando que surjam novos espigões que, aos poucos, começam a migrar da Avenida Osvaldo Aranha para as artérias interiores do bairro.
JÁ: Que tipo de modernidade, renovação, cabe ao bairro?
Elenara: Trata-se de uma pergunta complexa, que pode ser expandida para o resto da cidade. Em termos de arquitetura moderna, não há muitos prédios relevantes na cidade. Porto Alegre forjou uma identidade arquitetônica com o seu passado, muito divulgada em termos publicitários. É fácil reconhecer a Avenida Borges de Medeiros e o Viaduto Otávio Rocha, ou a Rua da Praia e a Casa de Cultura Mário Quintana, ou o Mercado Público. Ou seja, em termos históricos o centro de Porto Alegre tem uma arquitetura rica. Mas, renovação, o que está sendo feito de novo, é muito pouco. Há o prédio da Fundação Iberê Camargo, projeto do Álvaro Siza que, antes de ser construído, gerou muita polêmica. Mas, hoje é uma grande referência, atraindo pessoas de várias partes do mundo.
JÁ: Historicamente, há uma tradição na cidade em entregar seus grandes projetos a arquitetos estrangeiros: o português Alexandre José Montanha (primeiro palácio governamental), no século XVIII; os alemães Phillip Theodor von Normann (Teatro São Pedro), no século XIX, e Theodor Wiederspahn, século XX (prédio onde fica o atual MARGS), e por último, Álvaro Siza.
Elenara: Sim, e eles trouxeram uma boa contribuição para cidade. Mas há muitos arquitetos gaúchos e brasileiros de outros estados, como o capixaba Carlos Fayet, responsável, junto com o espanhol Fernando Corona (Santander Cultural), pelo Palácio da Justiça, de 1952, que o foi o primeiro prédio em estilo realmente modernista de Porto alegre. Faço parte, na Internet, do grupo NAU, que reúne arquitetos e urbanistas. Trata-se de um pessoal bastante ativo, muitos são professores, na cidade, muita gente do IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil, e que, recentemente, interveio por ocasião da construção da ciclovia na avenida Ipiranga, por exemplo. É preciso discutir mais a arquitetura.
JÁ: Como assim?
Elenara: Colocá-la acessível ao nível do público leigo. Para isso é necessário simplificar a linguagem, sem aquele jargão técnico que afasta os não iniciados, tipo o médico que ao invés de dizer dor de cabeça fala cefaleia. Abrir, por exemplo, a discussão da criação de um memorial explicando a história do Bom Fim. E nisso caberia um concurso de arquitetura para escolher o melhor projeto.
JÁ: Você é mais arquiteta de interiores. Neste aspecto, você destacaria alguma coisa neste bairro?
Elenara: Poderia fazer-se algo no sentido de sustentabilidade afetiva: móveis antigos, livros, fotos. O Bom Fim, que sempre teve população predominante judaica, está mudando, e nós estamos no meio desta transição. Então, antes que se descaracterize, este é o momento de juntar estas coisas, concretizar a memória legando às gerações futuras um mosaico de manifestações do passado e do presente, fazendo uma ponte cultural, juntando-se com as coisas que virão no futuro.
Por Francisco Ribeiro
Arquiteta sugere um memorial para o Bom Fim
22/06/2012 Publicado na(s) categoria(s): Cultura Geral
Há 20 anos com um escritório no Bom Fim, Elenara Stein Leitão, arquiteta formada pela UFRGS, faz um alerta: se a especulação imobiliária, e o subsequente adensamento, continuarem no ritmo atual, daqui a 20 anos restará muito pouco daquilo que para muitas gerações fez o charme do bairro, como as ruas de calçadas largas e tranquilas, seus prédios baixos, e uma certa boemia e gastronomia muito particular. Nesta entrevista ao JÁ, Elenara fala do seu amor ao Bom Fim e da necessidade de evitar a sua descaracterização.
JÁ: A senhora nasceu em Lajeado, morou em Novo Hamburgo e Brasília, e, atualmente, seu endereço residencial é no bairro Independência. O que o Bom Fim representa?
Elenara: Se tivesse que escolher um bairro de Porto Alegre, seria o Bom Fim, por tudo que ele representa na minha vida, desde que era estudante da Federal, das lembranças de uma certa boemia que existia ao longo da avenida Osvaldo Aranha e que ia até a rua Sarmento Leite, formando a histórica Esquina Maldita. Enfim, faz 35 anos que transito por aqui.
JÁ: o bairro mudou muito?
Elenara: O Bom Fim, como o resto da cidade, está se adensando. Assim, as perdas, em termos de arquitetura, são enormes. Ainda restam alguns conjuntos de casas, mas não se sabe até quando resistirão. A tendência é que estas antigas habitações sejam demolidas, que desapareçam para dar lugar a prédios residenciais ou conjuntos comerciais, o que é uma pena. Perde-se a memória como, caso mais recente, a derrubada do imóvel onde se localizava o cinema Baltimore para dar lugar a um mega empreendimento. O prédio poderia ter sido transformado num centro cultural, mantendo, inclusive, uma sala de cinema.
JÁ: O que poderia ser feito para a preservação do bairro?
Elenara: É uma coisa que tem de ser feita via associações de moradores, de amigos do bairro, e redes sociais na internet. Um dos paliativos, e que já ocorre há algum tempo, é a transformação das antigas casas em espaços comerciais e culturais, como livrarias, bares e restaurantes. Trata-se, assim, de estabelecer laços com a contemporaneidade, com a experimentação, preservando, criativamente, o velho através do novo, interagindo com as novas gerações, pois a vida moderna exige intervenções, adequações e reinvenções de antigos espaços.
Antigo cine Baltimore e o novo empreendimento que surge em seu lugar |
Elenara: O Bom Fim nunca foi um espaço rico em arquitetura, sua riqueza é, fundamentalmente, cultural, das pessoas, como os judeus, que se estabeleceram aqui, principalmente, a partir dos anos 1920. Não há praças e, por outro lado, fora a Capela da Osvaldo Aranha, não se pode destacar prédios isolados. Ou seja, ao contrário de outros locais da cidade, como o Centro ou a Cidade Baixa, não é uma área que chame a atenção, em termos de edificações, do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Mas acho que o que resta, como o conjunto de casas que mencionei, devem receber incentivos por parte do município para que os proprietários façam a sua manutenção. Também acho importante preservar o traçado das ruas, as calçadas largas, as árvores, cuidados com os dejetos de animais, equipamentos que facilitem a acessibilidade para deficientes, deixando o lugar aprazível para os moradores, os trabalhadores e demais transeuntes.
JÁ: Uma das características do bairro são os edifícios pequenos, de até três andares.
Elenara: Sim, que foram construídos nas décadas de 1950 e 1960, e caracterizam o segundo processo de ocupação do bairro. Eram, geralmente, construídos pelas famílias judias e que depois vendiam os apartamentos. Esses prédios, alguns já foram demolidos, podem passar por um processo de modernização, transformando-se em imóveis comerciais. Também é uma maneira de preservação, evitando que surjam novos espigões que, aos poucos, começam a migrar da Avenida Osvaldo Aranha para as artérias interiores do bairro.
JÁ: Que tipo de modernidade, renovação, cabe ao bairro?
Elenara: Trata-se de uma pergunta complexa, que pode ser expandida para o resto da cidade. Em termos de arquitetura moderna, não há muitos prédios relevantes na cidade. Porto Alegre forjou uma identidade arquitetônica com o seu passado, muito divulgada em termos publicitários. É fácil reconhecer a Avenida Borges de Medeiros e o Viaduto Otávio Rocha, ou a Rua da Praia e a Casa de Cultura Mário Quintana, ou o Mercado Público. Ou seja, em termos históricos o centro de Porto Alegre tem uma arquitetura rica. Mas, renovação, o que está sendo feito de novo, é muito pouco. Há o prédio da Fundação Iberê Camargo, projeto do Álvaro Siza que, antes de ser construído, gerou muita polêmica. Mas, hoje é uma grande referência, atraindo pessoas de várias partes do mundo.
JÁ: Historicamente, há uma tradição na cidade em entregar seus grandes projetos a arquitetos estrangeiros: o português Alexandre José Montanha (primeiro palácio governamental), no século XVIII; os alemães Phillip Theodor von Normann (Teatro São Pedro), no século XIX, e Theodor Wiederspahn, século XX (prédio onde fica o atual MARGS), e por último, Álvaro Siza.
Elenara: Sim, e eles trouxeram uma boa contribuição para cidade. Mas há muitos arquitetos gaúchos e brasileiros de outros estados, como o capixaba Carlos Fayet, responsável, junto com o espanhol Fernando Corona (Santander Cultural), pelo Palácio da Justiça, de 1952, que o foi o primeiro prédio em estilo realmente modernista de Porto alegre. Faço parte, na Internet, do grupo NAU, que reúne arquitetos e urbanistas. Trata-se de um pessoal bastante ativo, muitos são professores, na cidade, muita gente do IAB – Instituto dos Arquitetos do Brasil, e que, recentemente, interveio por ocasião da construção da ciclovia na avenida Ipiranga, por exemplo. É preciso discutir mais a arquitetura.
JÁ: Como assim?
Elenara: Colocá-la acessível ao nível do público leigo. Para isso é necessário simplificar a linguagem, sem aquele jargão técnico que afasta os não iniciados, tipo o médico que ao invés de dizer dor de cabeça fala cefaleia. Abrir, por exemplo, a discussão da criação de um memorial explicando a história do Bom Fim. E nisso caberia um concurso de arquitetura para escolher o melhor projeto.
JÁ: Você é mais arquiteta de interiores. Neste aspecto, você destacaria alguma coisa neste bairro?
Elenara: Poderia fazer-se algo no sentido de sustentabilidade afetiva: móveis antigos, livros, fotos. O Bom Fim, que sempre teve população predominante judaica, está mudando, e nós estamos no meio desta transição. Então, antes que se descaracterize, este é o momento de juntar estas coisas, concretizar a memória legando às gerações futuras um mosaico de manifestações do passado e do presente, fazendo uma ponte cultural, juntando-se com as coisas que virão no futuro.
Por Francisco Ribeiro
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