Entre livros e "nem parece do Brasil"
Tirei esse feriado para fazer algo há muito adiado: arrumar meus livros. E é sempre uma viagem, porque cada um guarda um momento, são pelo menos 30 anos de histórias, lembranças em uma dedicatória, cartões postais que saltam de dentro de páginas já meio amareladas, recortes de jornais de muitos anos atrás. Algumas vezes esses achados acabam sendo muito mais importantes que o próprio livro.
Me reencontrei com livros que merecem uma nova leitura, me surpreendi de novo com o imenso número de assuntos como psiquiatria e psicologia, me mostrando o quanto o ser humano e o "se descobrir" me interessa.
Pois é, pela quantidade de leitura sobre as lutas femininas e sobre o ser mulher na minha prateleira, devo reconhecer que formei uma boa teoria que reforçou minha prática. Mas os livros da Simone se foram, emprestados para um grande amigo que já não está mais entre nós. Livros também tem trajetória, sei que devia ser mais generosa e deixar que os meus fossem. Mas não. Peco nesse ponto. Ainda preciso deles, e mais do vários que tenho em forma digital. Quem sabe um dia...
E entre os achados uma crônica do Zuenir Ventura sobre Porto Alegre. Uma Porto Alegre que era bem mais bonita em 2003. Deu saudades.
Artigos | 12/11/2003
Me reencontrei com livros que merecem uma nova leitura, me surpreendi de novo com o imenso número de assuntos como psiquiatria e psicologia, me mostrando o quanto o ser humano e o "se descobrir" me interessa.
Não se nasce mulher: torna-se. Simone de Beauvoir
Pois é, pela quantidade de leitura sobre as lutas femininas e sobre o ser mulher na minha prateleira, devo reconhecer que formei uma boa teoria que reforçou minha prática. Mas os livros da Simone se foram, emprestados para um grande amigo que já não está mais entre nós. Livros também tem trajetória, sei que devia ser mais generosa e deixar que os meus fossem. Mas não. Peco nesse ponto. Ainda preciso deles, e mais do vários que tenho em forma digital. Quem sabe um dia...
E entre os achados uma crônica do Zuenir Ventura sobre Porto Alegre. Uma Porto Alegre que era bem mais bonita em 2003. Deu saudades.
Artigos | 12/11/2003
Nem parece do Brasil
por Zuenir Ventura *
Para quem sai do Rio (e de São Paulo também) dá inveja
constatar que Porto Alegre é a primeira metrópole em qualidade de vida,
uma das mais arborizadas, a que tem o melhor Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), a segunda capital mais atraente para investimentos e a que
tem um pôr-do-sol, bom, não sei se é mais bonito do que o de Ipanema ou
o de Brasília, mas está no páreo.
Estive lá este fim de semana para um seminário promovido pela Feira do Livro, e não sei por que esse feito não aparece no guia turístico como “a mais antiga” do Brasil, já que no próximo ano vai completar 50 anos. Certamente é uma das mais concorridas. Não conheço outra que mereça tanto o nome de feira, pelo agito e pela multidão de compradores de livros que reúne numa praça.
Isso talvez se deva ao fato de que Porto Alegre é uma cidade literária: deve ser o município com o maior número de escritores por metro quadrado. Em que outra cidade a população se mobiliza, faz campanha popular, coloca spots em emissoras de rádio, consegue um manifesto de oito mil assinaturas em favor de um candidato à Academia Brasileira de Letras? Pois isso foi feito recentemente para Moacyr Scliar, que no sábado conseguira outra proeza. Numa votação popular promovida pelo jornal “Zero Hora” para saber qual seria o fato literário do ano, ele estava em segundo lugar: logo atrás da Feira de Livros e à frente da Jornada Literária de Passo Fundo. E ele, como se sabe, é uma pessoa física, não um evento.
Se numa esquina você pede o nome de um escritor, vem o de uma dezena, alguns ilustres, já mortos, como Erico Verissimo, Mário Quintana, Josué Guimarães e Caio Fernando Abreu, outros consagrados ou menos conhecidos no Sudeste: Luiz Fernando Verissimo, Moacyr Scliar, Lia Luft, Carlos Nejar, Assis Brasil, João Gilberto Noll, João Simões Lopes Neto, Martha Medeiros, Letícia Wierzchowiski, Tabajara Ruas, Sérgio Faraco, José Clemente Posenato, Michel Laub, Walter Galvani, Charles Kiefer, Alcy Cheeuiche, Jane Tutikian, Hermes Benardi Jr., Luiz Coronel, Luiz de Miranda, Regina Zilberman, Rovílio Costa - e muitos outros que certamente esqueci de citar.
Alguém já escreveu que em Porto Alegre “não basta para a pessoa ser cineasta. Ela precisa ser cineasta e escritor. Não basta ser advogado, médico, cozinheiro, jornalista. Não importa a ocupação. De um jeito ou de outro os porto-alegrenses têm de escrever. O resultado é uma avalanche de textos ruins”. É provável que haja uma “avalanche de textos ruins” em meio a uma quantidade tão grande de autores. Mas é assim mesmo. O que surgiu de bom já valeu a pena.
Porto Alegre se orgulha também de ter criado um dos melhores modelos de orçamento participativo. Participação é com eles mesmo. Além do movimento que houve pró-Moacyr Scliar, há uma campanha de mobilização para a construção do Multipalco, um complexo cultural de 13 mil metros quadrados, que será uma extensão do tradicional Theatro São Pedro. À frente, Eva Sopher, um figura mítica que já havia transformado o São Pedro “numa das melhores salas do mundo”, como dizem os gaúchos.
As obras já começaram e, para financiá-las, organizou-se um mutirão financeiro reunindo as mais participativas empresas da cidade e do estado. No tapume que cerca a cratera já aberta - embaixo ficarão três dos seis andares - contei o logotipo de 20 parceiros da iniciativa privada e do poder público que estão bancando o projeto. E espera-se muito mais. Afinal, que empresário vai querer ficar fora do “maior complexo cultural da América Latina”?
Parece que Porto Alegre está mesmo com grana. Impressiona, por exemplo, o movimento do comércio, os shoppings superlotados (e como os tem lá! Devem ser uns 20!), a animação da noite, os restaurantes cheios - os típicos, os étnicos, as churrascarias, as galeterias, ai, como se come! Descobri que o porto-alegrense quando não está escrevendo é porque está comendo. Alguns, como Verissimo, pelo menos enquanto estive lá alugando a hospitalidade dele e de Lucia, comeu mais do que escreveu.
Falei do pôr-do-sol, que é famoso. Mas em matéria de espetáculo da natureza o que mais me impressionou mesmo, o que mais curti foi o esplendor dos jacarandás roxos e dos guapuruvus amarelos. Cobrem dezenas de ruas. Ninguém soube me dizer de quem foi a feliz idéia de plantar essas árvores há 40 ou 50 anos. No domingo de manhã, antes de pegar o avião, dei uma chegada à Praça da Matriz: não sabia se olhava para cima ou para o chão, que fica coberto por um tapete roxo e amarelo. E eu que pensava que Porto Alegre se dividia entre o vermelho do Inter e o azul do Grêmio.
Olhando aquela bela paisagem, eu disse como o Lula: “Nem parece uma cidade do Brasil”.
* Zuenir Ventura é jornalista e escritor.
Estive lá este fim de semana para um seminário promovido pela Feira do Livro, e não sei por que esse feito não aparece no guia turístico como “a mais antiga” do Brasil, já que no próximo ano vai completar 50 anos. Certamente é uma das mais concorridas. Não conheço outra que mereça tanto o nome de feira, pelo agito e pela multidão de compradores de livros que reúne numa praça.
Isso talvez se deva ao fato de que Porto Alegre é uma cidade literária: deve ser o município com o maior número de escritores por metro quadrado. Em que outra cidade a população se mobiliza, faz campanha popular, coloca spots em emissoras de rádio, consegue um manifesto de oito mil assinaturas em favor de um candidato à Academia Brasileira de Letras? Pois isso foi feito recentemente para Moacyr Scliar, que no sábado conseguira outra proeza. Numa votação popular promovida pelo jornal “Zero Hora” para saber qual seria o fato literário do ano, ele estava em segundo lugar: logo atrás da Feira de Livros e à frente da Jornada Literária de Passo Fundo. E ele, como se sabe, é uma pessoa física, não um evento.
Se numa esquina você pede o nome de um escritor, vem o de uma dezena, alguns ilustres, já mortos, como Erico Verissimo, Mário Quintana, Josué Guimarães e Caio Fernando Abreu, outros consagrados ou menos conhecidos no Sudeste: Luiz Fernando Verissimo, Moacyr Scliar, Lia Luft, Carlos Nejar, Assis Brasil, João Gilberto Noll, João Simões Lopes Neto, Martha Medeiros, Letícia Wierzchowiski, Tabajara Ruas, Sérgio Faraco, José Clemente Posenato, Michel Laub, Walter Galvani, Charles Kiefer, Alcy Cheeuiche, Jane Tutikian, Hermes Benardi Jr., Luiz Coronel, Luiz de Miranda, Regina Zilberman, Rovílio Costa - e muitos outros que certamente esqueci de citar.
Alguém já escreveu que em Porto Alegre “não basta para a pessoa ser cineasta. Ela precisa ser cineasta e escritor. Não basta ser advogado, médico, cozinheiro, jornalista. Não importa a ocupação. De um jeito ou de outro os porto-alegrenses têm de escrever. O resultado é uma avalanche de textos ruins”. É provável que haja uma “avalanche de textos ruins” em meio a uma quantidade tão grande de autores. Mas é assim mesmo. O que surgiu de bom já valeu a pena.
Porto Alegre se orgulha também de ter criado um dos melhores modelos de orçamento participativo. Participação é com eles mesmo. Além do movimento que houve pró-Moacyr Scliar, há uma campanha de mobilização para a construção do Multipalco, um complexo cultural de 13 mil metros quadrados, que será uma extensão do tradicional Theatro São Pedro. À frente, Eva Sopher, um figura mítica que já havia transformado o São Pedro “numa das melhores salas do mundo”, como dizem os gaúchos.
As obras já começaram e, para financiá-las, organizou-se um mutirão financeiro reunindo as mais participativas empresas da cidade e do estado. No tapume que cerca a cratera já aberta - embaixo ficarão três dos seis andares - contei o logotipo de 20 parceiros da iniciativa privada e do poder público que estão bancando o projeto. E espera-se muito mais. Afinal, que empresário vai querer ficar fora do “maior complexo cultural da América Latina”?
Parece que Porto Alegre está mesmo com grana. Impressiona, por exemplo, o movimento do comércio, os shoppings superlotados (e como os tem lá! Devem ser uns 20!), a animação da noite, os restaurantes cheios - os típicos, os étnicos, as churrascarias, as galeterias, ai, como se come! Descobri que o porto-alegrense quando não está escrevendo é porque está comendo. Alguns, como Verissimo, pelo menos enquanto estive lá alugando a hospitalidade dele e de Lucia, comeu mais do que escreveu.
Falei do pôr-do-sol, que é famoso. Mas em matéria de espetáculo da natureza o que mais me impressionou mesmo, o que mais curti foi o esplendor dos jacarandás roxos e dos guapuruvus amarelos. Cobrem dezenas de ruas. Ninguém soube me dizer de quem foi a feliz idéia de plantar essas árvores há 40 ou 50 anos. No domingo de manhã, antes de pegar o avião, dei uma chegada à Praça da Matriz: não sabia se olhava para cima ou para o chão, que fica coberto por um tapete roxo e amarelo. E eu que pensava que Porto Alegre se dividia entre o vermelho do Inter e o azul do Grêmio.
Olhando aquela bela paisagem, eu disse como o Lula: “Nem parece uma cidade do Brasil”.
* Zuenir Ventura é jornalista e escritor.
ResponderExcluirRenata Rubim Li o texto no teu blog, não consigo publicar meu comentário lá, então vou colar aqui: Tudo bem, é o olhar encantado de um forasteiro que desconhece algumas (ou muitas, todas) as mazelas da cidade. Por exemplo, o fato da "intelligenzia" cultural desconhecer o significado do design. Mas, claro, Porto Alegre não é Amsterdam, cidade que promove um evento do tipo "What Design Can Do"...
há 6 minutos · Curtir
A Renata Rubim me faz muito feliz com a sua opinião. Colei aqui o comentário que ela deixou no facebook
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ResponderExcluirElenara Stein Leitão Acho que ele se encantou com uma realidade que, a seus olhos, era mais interessante que de outras cidades brasileiras. Particularmente, acho que Porto Alegre piorou em algumas coisas de 2003 para cá. Mas realmente nos falta muito para sermos uma cidade bem mais significativa culturalmente. Vou colar teu comentário lá. Abraços
há 3 minutos · Curtir